Meus delírios, divagações, realidades e esquizofrenias, a quem interessar possa. Se viestes até aqui por bem, ego venia divinus indulge. Se por mal viestes, qui unum manus imprecatio divinus indulge. Danger: "Reperio scrobis et doli". Os comentários relativos aos posts deste diário são de responsabilidade dos visitantes, bem como condutas impróprias de clonagem de identidade em outros sites. Dúvidas, reclamações, declarações de amor? Email-me.

24 janeiro 2008

O preferido de Anaïs

O inegável é que no íntimo de sua alma ele era um intruso, um ser anti-social.
Mas um amor ocasional como forma de conforto e alívio era bom também, e ele não se considerava uma pessoa ingrata. Pelo contrário: ele sentia uma gratidão ardente e comovida por gestos de bondade natural e espontânea, indo quase às lágrimas. Atrás de seu rosto pálido, impassível e desiludido, sua alma de criança soluçava de gratidão à Connie e ardia com o desejo de revê-la; assim como sua alma renegada sabia que, na realidade, ele e ela nunca seriam um.
Michaelis era um amante nervoso e inseguro, cujo gozo vinha depressa e terminava logo. Havia muito de infantil e desprotegido em seu corpo nu: como as crianças são nuas! Suas defesas se acumulavam todas na inteligência, na astúcia, no seu instinto vital de astúcia, e quando este intinto estava adormecido ele parecia duplamente nu, criança de pele rosada e fina debatendo-se desesperada. Michaelis despertara nela um tipo selvagem de compaixão e ternura, e um desejo físico também, e aflito.
Ele escrevia a ela no mesmo tom choroso e melancólico, arejado por uma ou outra frase espirituosa, movido por uma afeição assexuada inexplicável. A afeição que ele sentia por ela se curvava a desesperança, e o distanciamento essencial permaneceu intocado. Ele era uma pessoa sem esperanças no coração, e queria ser uma pessoa sem esperanças. Ele maldizia a esperança. "Une immense espérance a traversé la terre", leu e algum livro - e seu comentário foi:
- E afogou desgraçadamente tudo o que valia a pena ter.
Connie e Michaelis tiveram um affair prolongado, trocando cartas e encontrando-se ocasionalmente em Londres. Bastava para propiciar a ela uma auto-afirmação sutil, um tanto irracional e despeitada: uma confiança quase mecânica em suas próprias forças, que vinha acompanhada de grande júbilo. Usava toda a alegria nova que descobrira para estimular Clifford. Naquela época ele escreveu suas melhores histórias, e viveu perto da felicidade ao seu modo estranho e torto.
Connie sempre tivera uma premonição de desesperança no seu romance com Michaelis, e a ligação com ele tinha espasmos ocasionais. Como ela sabia por premonição, o caso estava perto do fim. Michaelis tinha a compulsão de romper todos os elos e viver solto, isolado, absolutamente solitário outra vez. Quando os dias de alegria solta e contagiante se foram, passaram de vez, Connie tornou-se deprimida e irritadiça, e como Clifford sentiu saudades! Talvez se soubesse ele sonharia com a reunião deles dois novamente.
(O Amante de Lady Chatterley - D. H. Lawrence)