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14 outubro 2005

Pintando embaixo da chuva

Reproduzo aqui texto do David Coimbra:

Bienal: Hein?

"O porto-alegrense é todo boa vontade com a Bienal. Um cubo de aço oxidado, um bloco de mármore, uma sala vazia, a projeção muda de duas pessoas tremendo num banco de praça. Nada parece ter sentido. Pouco importa. As pessoas que visitam as obras expostas pela cidade se esforçam comoventemente para compreender até o incompreensível - ou o "incognoscível", termo mais adequado à linguagem da arte contemporânea.
Aquelas lâmpadas prateadas sobre pedestais, por exemplo. Obra de Ivan do Espírito Santo, à mostra no Cais do Porto. Nada mais do que isso: lâmpadas dessas caseiras, cor de prata, postas de pé em pequenos pedestais pintados de branco, quatro filas de seis unidades, 24 ao todo. Domingo à tarde, um casal de namorados estaca diante da escultura. Ele, o decorador Wagner dos Santos Faculo, 28 anos. Ela, a designer Susane Freitas, 25. Ficam ali, olhando por alguns segundos. Que tal?
Susane inclina a cabeça para o lado, provavelmente tentando descobrir um ângulo novo na peça:
- Não sei o que dizer...
Wagner deduz, depois de um minuto de silêncio reflexivo:
- Ao que tudo indica são lâmpadas.
Perto dele, uma jovem mãe tenta explicar a obra para seus três filhos. Não consegue. A todo instante é interrompida pelo menino, que pede:
- Quero ir ao banheiro.
Quando os visitantes também são obras de arte
Outro casal pára ao lado. São os tatuadores Marlon Richard, 30 anos, e Amithis Antunes, 20. Eles próprios poderiam ser apresentados como obras contemporâneas. Usam cabelos amarrados em grossas tranças rastafári, as de Marlon tingidas de bordô. Vestem-se de preto, calçam coturnos, tatuagens a cascatear braços abaixo. O que acham da obra? Marlon cala. Observa, apenas, repetindo para si mesmo, baixinho:
- O que dizer?...
Então, Amithis fala.
- Lâmpadas múltiplas... O que sugere é a luminosidade. Se você entrar ali no meio vai ver que seus olhos serão bastante confundidos.
A conclusão de Amithis anima Marlon. Ele começa a dissertar:
- É inspirador. É como uma selva moderna. Se tu entrares num campo de flores vais te sentir da mesma forma. Tenho vontade até de usar algumas das coisas que vejo aqui no meu ambiente de trabalho.
Está literalmente na cara que Marlon e Amithis são capazes de sacrifícios em nome da estética pós-moderna. Amithis tem sete piercings a lhe enfeitar o rosto. Marlon enfiou nos lóbulos das orelhas discos negros do tamanho de moedas de R$ 1, como os dos índios da Amazônia.
- Levou quatro anos para os lóbulos ficarem desse tamanho. Doeu, mas valeu a pena - conta Marlon, enquanto duas senhoras perguntam, apontando para o casal:
- São os autores da obra?
Mais adiante, a jovem mãe continua tentando explicar aos filhos o que eles estão vendo nos armazéns do porto. Fundamentos teóricos ela tem: Adriana Gimenez, 36 anos, trabalha como professora de arte. Os filhos são Leonardo, 6, Isabela, 4, e Rebeca, 13 anos. No caso, ela se empenha para dar significado a uma instalação de José Resende. Título: Amanuense. Basicamente, fileiras de varais onde estão penduradas camisas brancas. No solo, ventiladores ligados fazem quatro ou cinco camisas adejar como borboletas albinas.
- Isso mostra de maneira simples as coisas que a gente vive no dia-a-dia - empenha-se Adriana.
Rebeca, a mais velha, ouve com atenção grave. Isabela prefere levar a mão à frente de um ventilador para experimentar o ventinho. Leonardo se contorce:
- Preciso ir ao banheiro.
- Tudo é muito criativo aqui - continua a professora.
- Tenho tanto de ir ao banheiro...
Formas especiais? Sombras?Um prendedor? Ou nada?
- Estou adorando. Porque isso é arte: é quando uma obra foge do convencional. Quando faz pensar.
- Por amor de Deus, banheiro!
Leonardo corre pelo armazém sem encontrar o banheiro redentor. Sai do outro lado, o lado do rio. A visão de toda aquela água faz com que aperte os lábios em agonia. É observado por alguns visitantes. Entre eles, quatro amigos: o recepcionista Daniel Vargas, 22 anos, o funcionário público Paulo Moreira, 35, a auxiliar de limpeza Simone Fortunato, 38, e Frantiesca Moreira, que tem 17 anos e, segundo ela mesma, não faz nada. Os quatro admiram Sono, de Waltercio Caldas: uma lâmina de vidro presa por hastes de metal. Sob ela, uma pedra do tamanho de uma bola de futebol. No meio do vidro, um pequeno círculo vermelho. Daniel pondera:
- Não me deu sono...
Mas seu amigo, Paulo, levanta o queixo e arremete:
- A obra trabalha a sombra. Se olharmos de uma certa posição, vamos ver várias formas especiais. Só a pedra que não - e o fecho de ouro: - A pedra é imutável.
Simone ouve com atenção, olha de novo para a peça, agora iluminada pela descrição de Paulo.
- Aquela sombra ali é um prendedor - arrisca.
- Cada luz é um elemento diferente - acrescenta Daniel.
Só Frantiesca não se comove:
- Eu não entendi nada.
Poucos são tão sinceros. Quem admite que não entende, ou simplesmente não gosta do que vê, prefere não se manifestar ou não se identificar. Ou fazer como o casal João e Leda do Canto, ele de 79 anos, ela "com mais de 60", ele advogado, ela artista plástica. João e Leda reconhecem que não apreciaram algumas obras, mas não dizem quais. Em vez disso, ressaltam seu artista preferido, Amilcar de Castro, com esculturas expostas no penúltimo armazém antes do Gasômetro. As pessoas entram no armazém e percebem que ali há algo familiar.
- Acho que no Marinha tem uma escultura parecida - supõe uma garota, falando com a amiga.
São pedaços de metal cortados em blocos, losangos ou outras formas geométricas. É bonito? Tem algum significado? Depende de quem observa, provavelmente não seja nada disso, mas a supervisora comercial Luciana Perone, 30 anos, valoriza o trabalho do artista.
- Sei que não é fácil de dobrar o aço - diz, com a autoridade de quem estudou engenharia. E interpreta: - São peças simples. Ele trabalha com o óbvio, e no óbvio está a beleza.
A generosidade dos visitantes passa por testes mais rigorosos à medida que eles se aproximam da Usina do Gasômetro. No último armazém uma cortina preta leva-os a uma sala vazia, imersa em penumbra avermelhada, com poltronas no centro e música suave vinda de caixas de som nas paredes. É O museu vazio, do ucraniano Ilya Kabakov. Quatro moças afastam a cortina e espiam para dentro da sala. Entram, hesitantes. Uma delas fica de fora. Um minuto depois, as três amigas saem e querem saber por que a outra não entrou.
- Não ia entrar nesse sofazão! - alega.
Uma balança a cabeça:
- Tu não entendes nada de arte mesmo.
Menores de idade não devempassar dessas cortina
O mediador Márcio Lima sorri ao ouvir o comentário. Relata que as pessoas gostam muito da obra porque podem se sentar nela e descansar depois de percorrer todo o cais. E que o único problema que enfrenta é quando algum casal de namorados se entusiasma com o escurinho da sala.
Nesse momento, a mãe e os três filhos se aproximam. Uma senhora aponta para Leonardo:
- Ele já foi ao banheiro?
Rebeca, a irmã mais velha, vira-se para a mãe:
- A Bienal inteira sabe que ele quer ir ao banheiro.
Antes de chegar ao Gasômetro, Leonardo encontra o banheiro e, com ele, reencontra a felicidade. Assim, presta mais atenção às explicações da mãe. Mas Adriana não precisará arranjar sentido para algumas instalações que mostram fotos de pênis eretos ou projeções de cunho sexual - placas fixadas nas portas das salas onde estão as obras desaconselham o ingresso de menores de 18 anos. Há, no entanto, muitas outras instalações curiosas: um quarto onde estão deitados dois uruguaios, projeções de pedaços de carne pendurados, uma sala coberta de fotos de mamilos masculinos que motiva a exclamação espantada de uma freqüentadora:
- Quanta mamica!
E, do solo ao teto do Gasômetro, sacos plásticos negros de lixo pendentes de uma corda. O porto-alegrense aceita tudo, tenta assimilar tudo. Compreende que arte, como Coca-Cola, afinal, é isso aí."