OS MONSTROS GENTIS

"Bom dia, tudo bem? Você fez uma boa viagem?"
Eles ainda giravam quando um coquetel com bastante álcool foi servido. Eles giravam ainda quando dei a Vincent seu potinho preferido de abóboras com cenouras. E eles ainda giravam quando as crianças começaram a brincar ao lado deles: bolas, balanços, tratorzinhos com pedais, "Grrrrr eu sou um monstro! Se te pego, eu te como!"
Quando eles já haviam girado bastante, seus corpos foram cortados em pedaços sobre uma grande mesa montada sobre cavaletes, foram colocados num grande prato, depois passados e repassados aos cem convidados. À mesa, recusando desajeitadamente esta oferenda, alguém disse: "Não, obrigado, eu não como cadáver". Fui eu. As garrafas de vinhos passavam e repassavam, eles também. Encheram meu copo e pediram desculpas pelo fato do vinho não vir, como eu, de Bordeaux. Eu bebi bastante mesmo assim. Sem saber por que. Para me alegrar. Para me ocupar. Para fazer um pouco como eles. Encheram meu copo mais uma vez.

O primo e a esposa são criadores de porcos. Uma empresa especializada cuida de seus porcos. Eles mudaram de empresa porque, segundo me disseram, não confiavam mais na precedente. A duzentos metros do jardim têm dois grandes galpões. Há quatro anos, eles me fizeram visitar o primeiro. O primeiro é onde se encontra dezenas e dezenas de porcas em gaiolas tão pequenas que elas não podem nem se virar. Não visitei o segundo galpão, aquele onde engordam os leitões nascidos destas porcas. Será que eles nos escutam festejar? Sem duvida que não, pois eles não têm janelas, e a climatização do galpão faz muito barulho. Há dois ou três anos a climatização entrou em pane em um fim de semana. O primo disse que foi difícil para ele ver todos seus animais mortos. Deve ter sido estranho pra ele entrar neste galpão, de costume barulhento, e encontrar tudo tão calmo, e ver dentro das gaiolas as porcas transformadas em cadáveres, bem alinhadas umas contra as outras.

Há uma dezena de anos, eu assistia a uma tourada em Pamplona, na Espanha. Vendo o que faziam ao touro, tive o sentimento de que aquilo era algo grave, um sacrilégio, acreditava perceber um pouco da emoção que os aficionados sentiam ao comprar seus bilhetes de entrada. Mas olhando ao meu redor, não via nada além de bebedores de sangria que cantavam loucamente com um jeito alegre as melodias das arquibancadas. Parecia que eu assistia uma cerimônia de sacrifício animal, mas na verdade eu me encontrava nas arquibancadas de um estádio de futebol.

Em seguida eles chamaram a esposa do primo para que ela viesse também beijar aquele cadáver e beber de sua boca o vinho vermelho sangue. Em seguida, não sei o que eles fizeram, porque saí a pé.
No momento em que atravessei o portão, Guillaume correu se aproximando de mim para saber onde eu ia e quando eu voltaria. Ele não perguntou por que razão eu estava saindo. Caminhei pelo campo, arranquei um cartaz "caça proibida", e me deitei durante duas horas num bosque próximo a um pasto de vacas. Quando voltei pra casa, eles estavam novamente normais. Comiam calmamente a torta de maçãs, feita, como sempre, com ovos das galinhas sobreviventes de gaiolas e de leite de vacas das quais os novilhos são mortos para serem comidos.

(De Antoine Comiti. Tradução: Juliana Marques. Revisão: Genevive de Oliveira Moreira)
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