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17 janeiro 2007

OS MONSTROS GENTIS

Neste final de semana na Bretanha, no almoço de aniversário de um primo, não havia somente um porco grelhado, mas dois porcos grelhados. Os cadáveres giravam em cima do fogo durante horas a alguns metros da grande mesa disposta no jardim. Eles já giravam quando chegamos e dissemos:
"Bom dia, tudo bem? Você fez uma boa viagem?"
Eles ainda giravam quando um coquetel com bastante álcool foi servido. Eles giravam ainda quando dei a Vincent seu potinho preferido de abóboras com cenouras. E eles ainda giravam quando as crianças começaram a brincar ao lado deles: bolas, balanços, tratorzinhos com pedais, "Grrrrr eu sou um monstro! Se te pego, eu te como!"


Quando eles já haviam girado bastante, seus corpos foram cortados em pedaços sobre uma grande mesa montada sobre cavaletes, foram colocados num grande prato, depois passados e repassados aos cem convidados. À mesa, recusando desajeitadamente esta oferenda, alguém disse: "Não, obrigado, eu não como cadáver". Fui eu. As garrafas de vinhos passavam e repassavam, eles também. Encheram meu copo e pediram desculpas pelo fato do vinho não vir, como eu, de Bordeaux. Eu bebi bastante mesmo assim. Sem saber por que. Para me alegrar. Para me ocupar. Para fazer um pouco como eles. Encheram meu copo mais uma vez.

O tempo passava cada vez mais lentamente. Fazia calor também. As pessoas estavam cada vez mais animadas. Como era o aniversário do primo, deram a ele a cabeça do porco, para que ele festejasse com ela seus quarenta anos. Afinal de contas, era por isso que estávamos lá. É por isso também que, quando me perguntaram quanto eu dei pelo seu presente, eu disse "quarenta euros porque ele tem quarenta anos". Então eles lhe deram a cabeça do porco. Eu digo "eles" porque não sei exatamente quem lhe a entregou, porque eu não conseguia parar de olhar a cabeça do porco. Viam-se ainda suas pupilas – fechadas – mesmo com sua pele queimada. Ele tinha um ar muito calmo, como se meditasse. Sua cabeça foi cortada um pouco atrás das orelhas, ela não foi fatiada direito. Viam-se pedaços de carne, ou talvez pedaços de osso, que desenhavam uma forma irregular. Dentro de sua boca eles enfiaram um copo, o fundo primeiro, deixando o alto do copo aparecendo entre os lábios abertos do porco morto. Dentro do copo eles serviram vinho e disseram ao primo que ele deveria beber. Na verdade não estou certo de que eles realmente disseram isso, pois parecia ser algo muito natural. As pessoas riam. Talvez elas também cantassem, já nem sei bem.

O primo e a esposa são criadores de porcos. Uma empresa especializada cuida de seus porcos. Eles mudaram de empresa porque, segundo me disseram, não confiavam mais na precedente. A duzentos metros do jardim têm dois grandes galpões. Há quatro anos, eles me fizeram visitar o primeiro. O primeiro é onde se encontra dezenas e dezenas de porcas em gaiolas tão pequenas que elas não podem nem se virar. Não visitei o segundo galpão, aquele onde engordam os leitões nascidos destas porcas. Será que eles nos escutam festejar? Sem duvida que não, pois eles não têm janelas, e a climatização do galpão faz muito barulho. Há dois ou três anos a climatização entrou em pane em um fim de semana. O primo disse que foi difícil para ele ver todos seus animais mortos. Deve ter sido estranho pra ele entrar neste galpão, de costume barulhento, e encontrar tudo tão calmo, e ver dentro das gaiolas as porcas transformadas em cadáveres, bem alinhadas umas contra as outras.

Então, o primo fez o que se esperava dele: ele levou um cálice de vinho tinto à boca, e como o copo estava dentro da boca do porco, foi como se ele beijasse o porco morto na boca. Algumas pessoas gritavam incentivando, outras gargalhavam forte. Outras tiravam fotos. Creio me lembrar que aplaudiram quando ele acabou de beber. As pessoas riam bastante. Nesse meio tempo, me levantei do banco. Sentia meu coração bater rapidamente: não se contentavam em tê-lo matado, não era bastante terem se divertido ao lado de seu cadáver, come-lo, mas também era necessário humilhar uma vez mais este porco morto, como se profana o túmulo de um judeu desconhecido.

Há uma dezena de anos, eu assistia a uma tourada em Pamplona, na Espanha. Vendo o que faziam ao touro, tive o sentimento de que aquilo era algo grave, um sacrilégio, acreditava perceber um pouco da emoção que os aficionados sentiam ao comprar seus bilhetes de entrada. Mas olhando ao meu redor, não via nada além de bebedores de sangria que cantavam loucamente com um jeito alegre as melodias das arquibancadas. Parecia que eu assistia uma cerimônia de sacrifício animal, mas na verdade eu me encontrava nas arquibancadas de um estádio de futebol.

Se meu coração bate tão forte ao ver meu primo beijar aquela cabeça de cadáver cortada, acho que é também pelo fato de eu sentir medo: se eles são capazes disso, não seriam capazes de fazer algo desse tipo a alguém? Vi as crianças que assistiam a este espetáculo. Havia uma menininha de cinco ou seis anos com longos cabelos encaracolados. Ignoro se Guillaume viu também. Vincent dormia na sala, protegido.

Em seguida eles chamaram a esposa do primo para que ela viesse também beijar aquele cadáver e beber de sua boca o vinho vermelho sangue. Em seguida, não sei o que eles fizeram, porque saí a pé.

No momento em que atravessei o portão, Guillaume correu se aproximando de mim para saber onde eu ia e quando eu voltaria. Ele não perguntou por que razão eu estava saindo. Caminhei pelo campo, arranquei um cartaz "caça proibida", e me deitei durante duas horas num bosque próximo a um pasto de vacas. Quando voltei pra casa, eles estavam novamente normais. Comiam calmamente a torta de maçãs, feita, como sempre, com ovos das galinhas sobreviventes de gaiolas e de leite de vacas das quais os novilhos são mortos para serem comidos.

Quando alguém voltou à mesa, rindo, com a cabeça do porco morto – o copo ainda enfiado na boca – entrei em casa pra me sentar perto de Vincent e, vendo-o dormir tranquilamente, penso que ele teve sorte de nascer humano.

(
De Antoine Comiti. Tradução: Juliana Marques. Revisão: Genevive de Oliveira Moreira)