Meus delírios, divagações, realidades e esquizofrenias, a quem interessar possa. Se viestes até aqui por bem, ego venia divinus indulge. Se por mal viestes, qui unum manus imprecatio divinus indulge. Danger: "Reperio scrobis et doli". Os comentários relativos aos posts deste diário são de responsabilidade dos visitantes, bem como condutas impróprias de clonagem de identidade em outros sites. Dúvidas, reclamações, declarações de amor? Email-me.

15 agosto 2005

Sarau

Foi na quarta passada o Sarau do Museu, a convite do amigo Amon. Pessoas de todas as idades, altamente democrático: estudantes, blogueiros, orkuteiros, senhores do Clube Literário, teve quem tocou gaita, gaita de boca, violão, baixo, teve poesia, declamação, diálogos de msm, leitura de notícias, opiniões... Na entrada, telão com clipes e dj nas "pikapes". Vinho e salgadinhos para todos, assim, liberado. Computador à disposição para quem quisesse ficar on line. Nosso set list foi: Duplo, Vida de Supermercado, Onu & EUA, Sobrenome, Observática e Farrapos. Algumas coisas lidas e umas imagens aqui embaixo. E outra aqui.

ONU & EUA (Rafael Martinelli)
Na TV vi bebês
sem pais, sem mães, sem mãos.

Tão cirúrgicas as bombas
caem lá.
Troco o canal,
fecho o jornal,

não é comigo, não.
São só uns.
Estatísticas, números, fotografias.

Tão cirúrgicas as bombas
caem lá.
Troco o canal,

fecho o jornal,
não é comigo, não.
(Abra as pernas pra América)
Se é lá tanto faz.
Lágrimas em outra língua.

Assista. Até seres a vítima.

FAÍSCA (Charles Bukowski)

dávamos a eles mais do que nos pediam
e ainda assim não lhes dávamos nada
DEUS, ME SINTO UMA MERDA (FrancEye)
Ao menos está claro agora
ele me odiava
por ser alguém que nunca fui
talvez eu o amasse pela mesma razão
eu achava que ele queria ouvir histórias incríveis
quando tudo o que ele queria era alguém para limpar a cozinha,
justamente como dizia o tempo todo


AS PESSOAS DA SORVETERIA (Charles Bukowski)

a patroa me tirou a bebida por um tempo
e agora a pica levanta mais
e há muito o que fazer com a pica...

porém, as noites são diferentes:
em vez de ouvir música em meio à fumaceira e a cerveja,
as noites alternam dificuldades
nós vamos até a sorveteria e são 31 sabores
crocante, chiclé, damasco, morango, chocolate com menta...

e ainda naquela noite
faço bom uso da pica
uso para amar
e depois nós falamos de coisas à-toa

nossas cabeças voltadas para a janela aberta sob o luar
dormimos nos braços um do outro
o pessoal da sorveteria me faz bem

por dentro e por fora
mê dê duas bolas de creme

SEM NOME (Charles Bukowski)
ela vai ver este
corpo
rijo e
branco
vai sacudi-lo e
talvez

sacudi-lo de novo:
"Ei?"

e não vai ouvir resposta.
não é minha morte que me
preocupa, é minha mulher
deixada sozinha com este monte
de coisa nenhuma.
no entanto
eu quero que ela
saiba

que dormir
todas as noites
a seu lado

e mesmo as
discussões mais banais
eram coisas
realmente esplêndidas
e as palavras
difíceis
que sempre tive medo de

dizer
podem agora
ser ditas:
eu te

amo.

AQUELA (
Nelson Rodrigues)
"Toda a família
tem um momento
que começa a apodrecer.
Percebeu?
Pode ser a família mais decente,
mais digna do mundo.

Lá um dia aparece um
tio que é pederasta,
uma irmã que é lésbica,

um pai que é ladrão,
um cunhado que é louco.
Tudo ao mesmo tempo,
tá ouvindo Edgar?
Acaba.
Com a minha autoridade
de bêbado te digo:
a família da minha

mulher, da tua noiva
começou a apodrecer.
Nós, eu, você também Edgar."
ALCÓOLICAS (Hilda Hilst)
É crua a vida. Alça de tripa e metal.
Nela despenco: pedra mórula ferida.
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.
Como-a no livor da língua
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me
No estreito-pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida
Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.
E perambulamos de coturno pela rua
Rubras, góticas, altas de corpo e copos.
A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.

E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima
Olho d'água, bebida. A Vida é líquida.
(Alcoólicas - I)

* * *
Também são cruas e duras as palavras e as caras
Antes de nos sentarmos à mesa, tu e eu, Vida
Diante do coruscante ouro da bebida. Aos poucos
Vão se fazendo remansos, lentilhas d'água, diamantes
Sobre os insultos do passado e do agora. Aos poucos
Somos duas senhoras, encharcadas de riso, rosadas
De um amora, um que entrevi no teu hálito, amigo

Quando me permitiste o paraíso. O sinistro das horas
Vai se fazendo tempo de conquista. Langor e sofrimento
Vão se fazendo olvido. Depois deitadas, a morte
É um rei que nos visita e nos cobre de mirra.
Sussurras: ah, a vida é líquida.
(Alcoólicas - II)


* * *
E bebendo, Vida, recusamos o sólido
O nodoso, a friez-armadilha
De algum rosto sóbrio, certa voz
Que se amplia, certo olhar que condena
O nosso olhar gasoso: então, bebendo?
E respondemos lassas lérias letícias
O lusco das lagartixas, o lustrino
Das quilhas, barcas, gaivotas, drenos
E afasta-se de nós o sólido de fechado cenho.
Rejubilam-se nossas coronárias. Rejubilo-me

Na noite navegada, e rio, rio, e remendo
Meu casaco rosso tecido de açucena.
Se dedutiva e líquida, a Vida é plena.
(Alcoólicas - IV)

* * *
Te amo, Vida, líquida esteira onde me deito
Romã baba alcaçuz, teu trançado rosado
Salpicado de negro, de doçuras e iras.

Te amo, Líquida, descendo escorrida
Pela víscera, e assim esquecendo
Fomes
País
O riso solto
A dentadura etérea
Bola
Miséria.
Bebendo, Vida, invento casa, comida

E um Mais que se agiganta, um Mais
Conquistando um fulcro potente na garganta
Um látego, uma chama, um canto. Amo-me.
Embriagada. Interdita. Ama-me. Sou menos

Quando não sou líquida.
(Alcoólicas - V)