Sarau
ONU & EUA (Rafael Martinelli)
Na TV vi bebês
sem pais, sem mães, sem mãos.
Tão cirúrgicas as bombas
caem lá.
Troco o canal,
fecho o jornal,
não é comigo, não.
São só uns.
Estatísticas, números, fotografias.
Tão cirúrgicas as bombas
caem lá.
Troco o canal,
fecho o jornal,
não é comigo, não.
(Abra as pernas pra América)
Se é lá tanto faz.
Lágrimas em outra língua.
Assista. Até seres a vítima.
FAÍSCA (Charles Bukowski)
dávamos a eles mais do que nos pediam
e ainda assim não lhes dávamos nada Ao menos está claro agora
ele me odiava
por ser alguém que nunca fui
talvez eu o amasse pela mesma razão
eu achava que ele queria ouvir histórias incríveis
quando tudo o que ele queria era alguém para limpar a cozinha,
justamente como dizia o tempo todo
AS PESSOAS DA SORVETERIA (Charles Bukowski)
a patroa me tirou a bebida por um tempo
e agora a pica levanta mais
e há muito o que fazer com a pica...
porém, as noites são diferentes:
em vez de ouvir música em meio à fumaceira e a cerveja,
as noites alternam dificuldades
nós vamos até a sorveteria e são 31 sabores
crocante, chiclé, damasco, morango, chocolate com menta...
e ainda naquela noite
faço bom uso da pica
uso para amar
e depois nós falamos de coisas à-toa
nossas cabeças voltadas para a janela aberta sob o luar
dormimos nos braços um do outro
o pessoal da sorveteria me faz bem
por dentro e por fora
mê dê duas bolas de creme

ela vai ver este
corpo
rijo e
branco
vai sacudi-lo e
talvez
sacudi-lo de novo:
"Ei?"
e não vai ouvir resposta.
não é minha morte que me
preocupa, é minha mulher
deixada sozinha com este monte
de coisa nenhuma.
no entanto
eu quero que ela
saiba
que dormir
todas as noites
a seu lado
e mesmo as
discussões mais banais
eram coisas
realmente esplêndidas
e as palavras
difíceis
que sempre tive medo de
dizer
podem agora
ser ditas:
eu te
amo.
AQUELA (Nelson Rodrigues)
"Toda a família
tem um momento
que começa a apodrecer.
Percebeu?
Pode ser a família mais decente,
mais digna do mundo.
Lá um dia aparece um
tio que é pederasta,
uma irmã que é lésbica,
um pai que é ladrão,
um cunhado que é louco.
Tudo ao mesmo tempo,
tá ouvindo Edgar?
Acaba.
Com a minha autoridade
de bêbado te digo:
a família da minha
mulher, da tua noiva
começou a apodrecer.
Nós, eu, você também Edgar."

É crua a vida. Alça de tripa e metal.
Nela despenco: pedra mórula ferida.
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.
Como-a no livor da língua
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me
No estreito-pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida
Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.
E perambulamos de coturno pela rua
Rubras, góticas, altas de corpo e copos.
A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima
Olho d'água, bebida. A Vida é líquida.
(Alcoólicas - I)
* * *
Também são cruas e duras as palavras e as caras
Antes de nos sentarmos à mesa, tu e eu, Vida
Diante do coruscante ouro da bebida. Aos poucos
Vão se fazendo remansos, lentilhas d'água, diamantes
Sobre os insultos do passado e do agora. Aos poucos
Somos duas senhoras, encharcadas de riso, rosadas
De um amora, um que entrevi no teu hálito, amigo
Quando me permitiste o paraíso. O sinistro das horas
Vai se fazendo tempo de conquista. Langor e sofrimento
Vão se fazendo olvido. Depois deitadas, a morte
É um rei que nos visita e nos cobre de mirra.
Sussurras: ah, a vida é líquida.
(Alcoólicas - II)
* * *
E bebendo, Vida, recusamos o sólido
O nodoso, a friez-armadilha
De algum rosto sóbrio, certa voz
Que se amplia, certo olhar que condena
O nosso olhar gasoso: então, bebendo?
E respondemos lassas lérias letícias
O lusco das lagartixas, o lustrino
Das quilhas, barcas, gaivotas, drenos
E afasta-se de nós o sólido de fechado cenho.
Rejubilam-se nossas coronárias. Rejubilo-me
Na noite navegada, e rio, rio, e remendo
Meu casaco rosso tecido de açucena.
Se dedutiva e líquida, a Vida é plena.
(Alcoólicas - IV)
* * *
Te amo, Vida, líquida esteira onde me deito
Romã baba alcaçuz, teu trançado rosado
Salpicado de negro, de doçuras e iras.
Te amo, Líquida, descendo escorrida
Pela víscera, e assim esquecendo
Fomes
País
O riso solto
A dentadura etérea
Bola
Miséria.
Bebendo, Vida, invento casa, comida
E um Mais que se agiganta, um Mais
Conquistando um fulcro potente na garganta
Um látego, uma chama, um canto. Amo-me.
Embriagada. Interdita. Ama-me. Sou menos
Quando não sou líquida.
(Alcoólicas - V)

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